20º Domingo do Tempo Comum
“Vim trazer o fogo à terra” – Lc 12,49-53 – Neste 20º Domingo do tempo Comum, dia em que no Brasil se comemora o “dia dos pais”, a liturgia nos coloca diante de um texto evangélico, dos mais obscuros e difíceis de interpretar de todo o Novo Testamento. A linguagem dura de Jesus é um tanto estranha no contexto do Evangelho de Lucas, que é uma verdadeira obra de arte a respeito da compaixão e da misericórdia divina. Lucas é um artista da palavra. Sendo assim, o relato nos desafia a uma sondagem mais atenta na busca do ensinamento escondido neste texto.
Do ponto de vista literário o texto divide-se em duas partes: Na primeira (vv. 49-50), há dois temas que se conectam: o “fogo” e o “batismo”. Jesus começa por dizer que veio “trazer o fogo à terra”. O que significa isto? O “fogo” possui um significado simbólico complexo. No Antigo Testamento representa a “santidade divina”, que atrai e amedronta. Os profetas usam a imagem do fogo para anunciar e descrever a “ira de Deus” (cf. Am 1,4), que “castiga e purifica”. O fogo purificador e transformador irá eliminar o pecado e fará nascer o mundo novo, de justiça e de paz sem fim. Quanto à imagem do “batismo”, ela se refere, certamente, à morte de Jesus (cf. Mc10,38. Para que o “fogo” transformador e purificador se manifeste, é necessário que Jesus faça da sua vida um dom de amor, até à cruz.
Na segunda parte (vv. 51-53), Jesus confessa que não veio trazer a “paz”, mas a “divisão”. Isto gera impacto ao leitor atento, pois Lucas deixou expresso, frequentemente, que “a paz” era um dom messiânico e que a função do Messias seria guiar os passos “no caminho da paz” (Lc 1,79). Qual o sentido de dizer que Jesus “não veio trazer a paz”, mas a “divisão”?
Continuamos no “caminho para Jerusalém”, caminho que conduz Jesus ao dom total da vida. No horizonte está, cada vez mais próximo, o confronto final com a instituição judaica e romana e, consequente, a morte na cruz. Pode-se supor que estes “ditos” faziam parte de um ensinamento de Jesus aos seus discípulos, a respeito da sua missão, da radicalidade do “Reino” e sobre as exigências do discipulado. Na época em que Lucas escreveu seu evangelho, entre os anos 80 e 90 dC, era uma época de perseguições, mortes, medo, o que levava muitos seguidores do “caminho”, a desanimarem e abandonarem as suas comunidades (como os discípulos de Emaús). Então Lucas recorda alguns “ditos”, proferidos em momentos desconhecidos para nós, que definem a missão de Jesus como um “lançar fogo à terra”, a fim de que desapareçam o egoísmo, a perseguição, a escravidão, o pecado e nasça o mundo novo. A proposta de Jesus trará, no entanto, “divisão”, pois é uma proposta exigente e radical, que provocará a oposição de muitos.
Sabemos, por experiência, que as reações das pessoas diante da proposta de Jesus são, ou de adesão e aceitação, ou de rejeição e até perseguição. Este quadro devia refletir a realidade das comunidades conhecidas por Lucas: adesão ao projeto de Jesus por uns, rejeição radical dos valores do Reino por outros. Opções opostas de vida e de valores, certamente geravam divisões no seio das famílias e das comunidades. Hoje, por vezes, se busca relativizar, suavizar as exigências do reino para se ficar em paz e não sofrer oposições e não haver divisões. A proposta de Jesus não se conecta com uma paz que não questiona nem incomoda ninguém, mas passa por opções radicais, que interpelam e que obrigam a decisões arriscadas.
Este Evangelho é, certamente, de grande atualidade. Por questões políticas ou religiosas, famílias e comunidades se dividem e chegam a se odiar e até se matar. Infelizmente muitos cristãos e até lideranças da Igreja aceitam abençoar ideologias que escravizam e oprimem, para manter uma certa “paz social” ou para manter determinados privilégios. E Jesus continua a proclamar: “Vim trazer o fogo à terra”. (Ir. Zenilda Luzia Petry – FSJ)